No dia 23 de maio de 2025, o governo da Itália sancionou uma nova lei (Lei 74/2025) que dificulta o acesso à cidadania italiana para mais de 30 milhões de ítalo-descendentes nascidos fora do país.

A proposta de mudança foi encabeçada pelo governo da primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni. E tanto no Senado quanto na Câmara, a aprovação contou com o voto favorável da maioria dos parlamentares.  

O governo italiano afirma que a mudança objetiva a redução dos gastos e a desobstrução dos serviços públicos da Itália.

Além disso, segundo o vice-ministro Antonio Tajani, a decisão funcionaria como uma resposta imediata à “indevida comercialização” do passaporte italiano, impedindo o reconhecimento da cidadania para os “falsos italianos”.  

A nova lei de cidadania descarta as vias vias administrativas e permite que a cidadania italia seja reconhecida somente pela via judicial.

Contudo, o decreto-lei, desde a sua publicação de caráter emergencial no Diário Oficial no dia 28 de março, vem fomentando discursões entre especialistas, parlamentares, ítalo-descendentes e representantes de entidades não-governamentais do país.  

Isso porque o texto oficial do decreto publicado no dia 28/03, mas que já impedia novos pedido de cidadania a partir de 27/03, apresenta trechos de inconstitucionalidade que vão contra a vários princípios estabelecidos pela Constituição italiana há mais de 30 anos, representado, assim, um abuso do instrumento legistlativo e um desvio do processo democrático.

O Osservatório Costituzionale, órgão da Associação Italiana de Constitucionalistas (AIC), recentemente publicou um parecer criticando a nova lei. Assinado pelo advogado Marco Infusino, o texto infere que a medida não segue a Constituição, viola direitos adquiridos e atinge famílias que já nasceram com o direito à cidadania.  

Um desses preceitos destacados pelo renomado jurista italiano é o ius sanguinis, que garante que a cidadania italiana seja transmitida pelo sangue. Ou seja, um direito que se perpetua através das gerações, mas no qual o decreto afeta retroativamente, colocando o ônus da prova.   

É inaceitável retirar retroativamente a cidadania de quem já nasceu com esse direito. Isso viola o Estado de Direito e a própria ideia de justiça.”  

— Marco Infusino, advogado constitucionalista. 

O limite geracional estabelecido pela nova lei e a obrigatoriedade da exclusividade da cidadania italiana para transmiti-la impõem um verdadeiro fim ao direito de muitos descendentes, principalmente os nascidos na América do Sul.   

Italianos no Brasil: visão da Itália  

De acordo com, Rafael Gianesini, CEO da asessoria Cidadania4U, cerca de 95% dos ítalo-descendentes nascidos no Brasil foram afetados com as recentes mudanças na lei de cidadania.   

Entre os séculos XIX e XX, o Brasil (e outros países das Américas) recebeu de braços abertos um enorme contingente de imigrantes italianos, que encontraram por aqui inúmeras oportunidades de prosperar e fugir das crises que assolavam a Europa de modo geral. O que explica o grande volume de ítalo-descendentes nascidos no Brasil.  

Novo decreto cidadania italiana. Mapa de imigração.
Imigração da Itália ao redor do mundo. | Infográfico: Brilliant Maps.

Além disso, esse fato proporcionou que o maior país da América do Sul também abrigasse uma das maiores colônias italianas fora da Itália, contribuindo diretamente na preservação da cultura da península itálica ao redor do mundo.   

Mas os recentes acontecimentos sugerem que não é com olhos de gratidão que parte dos italianos nascidos e estabelecidos na Itália enxergam os laços culturais formados com suas diásporas, que tão bem receberam os imigrantes do passado.   

“Eliminar retroativamente a cidadania de descendentes é apagar parte da identidade do povo italiano. É uma escolha que custa não só juridicamente, mas moralmente e economicamente.”

— Marco Infusino, advogado constitucionalista. 

Acusações infundadas foram constantemente difundidas na mídia do país e usadas para catalisar as mudanças restritivas na lei de cidadania: alegando que os ítalo-descendentes desejam a cidadania italiana somente para ter acesso ao passaporte europeu e, consequentemente, aos seus inúmeros benefícios.  

É certo que o interesse dos ítalo-descendentes não-nascidos na Itália no reconhecimento da cidadania italiana aumentou progressivamente nos últimos anos e que uma das principais motivações para isso é a possibilidade de usufruir da força do passaporte vermelho.   

Será que o desejo de se tornar cidadão italiano pode ser medido por uma régua tão simplória, que exclui a vivência de cada família que traz a cultura da Itália viva no sangue?  

A influência do serviço público italiana  

De acordo com dados divulgados pela CNN, entre 2014 e 2024, a quantidade de italianos que moram no exterior aumentou 40%, chegando à expressiva marca de 6,4 milhões de pessoas. Somente no Brasil, durante o mesmo período, o número de ítalo-descendentes foi de 14 mil para 20 mil.   

Em paralelo, o crescente interesse no reconhecimento da cidadania italiana, principalmente em países como o Brasil e Estados Unidos, refletiu diretamente no funcionamento dos serviços públicos da Itália. O tribunal responsável pelo julgamento dos pedidos de cidadania via judicial, a principal modalidade de reconhecimento da cidadania escolhida pelos descendentes nascidos fora da Itália, ficou sobrecarregado, atrasando a conclusão de milhares de processos já protocolados.   

Assim, em 1º de julho de 2022, o governo italiano formulou sua primeira medida para tornar o processo civil mais eficaz: descentralizou os pedidos de reconhecimento via judicial que, até a data, corriam somente no Tribunal de Roma.   

Dessa forma, o tribunal da região de nascimento do antepassado italiano do descendente passou a julgar as ações de cidadania solicitadas. Caso o Dante Causa (quem transmite o direito) do processo tivesse nascido em Milão, por exemplo, o tribunal da região seria o órgão competente para julgar o pedido.   

Reviravolta: linha do tempo das mudanças na lei  

O que parecia ser uma medida de incentivo ao reconhecimento da cidadania, acabou sendo ofuscada por outra decisão tomada pelo governo italiano para “solucionar” as deficiências nos serviços públicos do país: em dezembro de 2024, o aumento para 600 euros das taxas cobradas no processo de reconhecimento da cidadania, previsto na no Plano Orçamentário para 2025.   

A mundança da taxa, desde o início da sua aprovação, revelava ter uma finalidade diferente da que o governo italiano anunciava. A solução para a melhoria dos serviços prestados à população acabou por se tornar uma medida que desencorajou os pedidos de cidadania, já que as taxas criaram enormes barreiras econômicas entre a justiça italiana e os ítalo-descendentes.   

Os 600 euros passaram a ser cobrados individualmente para cada requerente inscrito no processo. Antes do aumento, as taxas recaiam sobre o processo, o que possibilitava a divisão dos custos entre todos os familiares que realizavam o reconhecimento em conjunto. Agora, para uma família de 5 membros, as taxas do processo judicial são cobradas pelo número de pessoas e, somadas, chegam a custar por volta dos 20 mil reais.   

Embora ainda não haja dados oficiais que confirmem uma redução no número de pedidos, especialistas e consultorias na área de cidadania italiana afirmam que os custos elevados causados pela mudança na taxa gerou uma queda repentina na procura pela cidadania italiana.    

Não obstante, logo em seguida, no mesmo mês, o governo italiano passou difundir a falsa informação que a tal “comercialização” do passaporte italiano se relacionava diretamente com a existência de assessorias que realizavam os trâmites burocrático, como a pesquisa e organização dos documentos, para ítalo-descendentes que tinham o desejo de reconhecimento da cidadania.   

Assim…

Diante da força desse discurso enviesado dos políticos, é possível deduzir que o debate sobre os limites da cidadania italiana infamaram na Itália e criaram na população do país uma ideia do ítalo-descendente que não condiz em nada com a realidade.   

É importante esclarecer que nenhuma dessas empresas realizavam ou realizam a venda de passaportes. O processo logísticos estabelecidos pelas assessorias se inicia por uma criteriosa análise de cada cliente, buscando sempre a comprovação de que ele tenha direito ao reconhecimento da cidadania italiana ou não.   

E por fim, a última e mais recente cartada do governo italiano para limitar o acesso à cidadania italiana foi dada: a inesperada publicação do decreto-lei 36/20225, também conhecido como decreto Tajani, que de uma hora para outra colocou o sonho de milhares de descendentes a perder.   

O que fica evidente em toda essa trajetória é como a Itália, mesmo com uma iminente crise demográfica, tem cada vez mais fechado suas portas para os cidadãos italianos nascidos no exterior, que veem no reconhecimento da cidadania de seus antepassados uma possibilidade de contribuir para o crescimento do país.   

Overview

Para ter uma visão mais detalhada, o Mapa Regionais das Comunidades Brasileiras no Exterior, divulgado pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil, informa que em 2023, cerca de 159 mil brasileiros residiam na Itália, cooperando para o desenvolvimento interno do país. E claro, a maior facilidade da obtenção da cidadania italiana, na época, estava diretamente ligada ao aglomerado de brasileiros que viviam na Itália. Em contrapartida, o último relatório publicado pelo ISTAT — Instituto Nazionale di Statistica – aponta que somente cerca de 51.125 brasileiros moram no País da Bota atualmente.

A mudança para recentes restrições ao acesso à cidadania, nacionalidade e imigração no Velho Continente, segundo especialistas, é reflexo das movimentações políticas radicais que vêm surgindo em diversas regiões da Europa, como Itália, Portugal e Reino Unido, somadas à opinião pública em relação à presença de estrangeiros.  

Nova lei de cidadania: mudanças, análise de especialistas e posição da C4U  

Inversamente ao caminho percorrido na obra “A Divina Comédia”, escrita pelo italiano Dante Alighieri, os ítalo-descendentes não nascidos na Itália foram expulsos do céu (de forma inconstitucional) e chegaram ao seu inferno: com a aprovação do decreto, a cidadania italiana passa a ter um limite geracional definido; até 2ª geração.   

Ou seja, agora somente filhos e netos de italianos têm direito de reconhecimento da cidadania de seus ascendentes. A lei anterior não impunha limites nesse quesito. Se o transmissor da cidadania fosse o tetravô, o descendente do italiano poderia reconhecer a cidadania somente com a comprovação desse parentesco por meio de documentos ou outros registros.   

Não há dúvidas que a Constituição italiana afirma categoricamente que todos os descendentes de um cidadão italiano nascem automaticamente italianos, mesmos os oriundos de outros países. Mas com a sanção do decreto, o automaticamente ganha um entendimento que impõe limite e, claramente, opõem-se aos princípios fundamentais do país.  

A nova lei também estabelece novos requisitos para a transmissão ou aquisição da cidadania, como o italiano Dante Causa ser exclusivamente cidadão italiano para passá-la aos seus descendentes. O que contraria, assim, o conceito de dupla cidadania estabelecido pela Lei n.º 91, de 5 de fevereiro de 1992, que admite o reconhecimento de outra cidadania sem a perda automática da italiana.  

Em suma:

Nesse sentido, e retomando as conclusões do parecer assinado pelo jurista Marco Infusino, “a cidadania iure sanguinis não pode ser vista como uma ficção, mas um vínculo legítimo com o povo italiano”.   

A nova lei resgata uma visão ultrapassada da cidadania, baseada em exclusão e desconfiança. Ignorando conquistas históricas como reconhecimento da cidadania por linha materna (desde 1983) e a reversão de discriminações do passado (ex: casamento com estrangeiros).   

Além disso, alega combater abusos (passaportes “comercializados”), mas adota medidas desproporcionais e potencialmente discriminatórias. Por isso que a Itália (e tão somente ela) deve tratar para os ítalo-descendentes não nascidos como uma forma de solucionar problemas futuros na população, e não como a causa principal de diversos problemas que afetam o país.   

E que as soluções propostas andem em consonância com a Constituição italiana e os direitos humanos, buscando sempre um equilíbrio entre a segurança jurídica, eficiência administrativa e a justiça histórica da Itália.